segunda-feira, 4 de abril de 2016

Alerj vota nesta quarta PL que obriga maternidades a aceitarem doulas

Fervilha no Rio de Janeiro a recente decisão da Maternidade Municipal Maria Amélia Buarque de Hollanda de proibir o acesso de doulas a partos realizados na instituição. A iniciativa é resultado da Resolução 266/2012 do Conselho Regional de Medicina do Estado do Rio de Janeiro (Cremerj), que proíbe o acompanhamento dessas profissionais nas instituições de saúde em todo o estado. A Resolução estava suspensa por Ação Civil Pública movida pelo Conselho Regional de Enfermagem (Coren), mas voltou a valer em fevereiro deste ano, depois da decisão favorável em instância superior. 


Doulas são profissionais capacitadas para dar suporte emocional e físico para mulheres antes, durante e após o parto. Têm como função também compartilhar informações sobre todo o processo do nascimento e direitos da mulher.
Entenda mais sobre o papel da doula.
Veja também o Programa do Ministério da Saúde de Humanização do Parto.

A maternidade pública Maria Amélia é referência na atenção ao parto humanizado na cidade do Rio de Janeiro e tem sido procurada até mesmo por mulheres cobertas por planos de saúde e que não querem correr o risco de serem encaminhadas a uma cirurgia desnecessária na rede privada. Por isso está no centro da polêmica. Algumas gestantes têm conseguido o direito de serem acompanhadas por doulas na maternidade, mas somente por meio de liminar expedida pela justiça. 

Mobilização na Alerj

Para fazer valer os direitos das gestantes e das profissionais,
Atuação na Alerj dia 29/3. Foto de Vítor Soares
doulas e mulheres por elas acompanhadas, ou que desejam um dia o acesso a um parto humanizado, estiveram na Alerj na última semana em campanha pela aprovação do Projeto de Lei 2195/2013, que obriga as instituições de saúde a

permitirem a presença de doulas no pré-parto, parto e pós-parto, caso seja esse o desejo da mulher. Elas não contariam como acompanhantes, mas como parte da equipe de assistência ao parto. O PL está previsto para ser votado nesta quarta-feira, dia 6/4. São necessárias duas seções para sua aprovação antes de ser enviado para a sanção do governador.

A maioria dos parlamentares da assembleia foi procurada e se mostrou favorável ao pleito. O deputado estadual Flávio Serafini (PSOL) discursou no plenário da Alerj em apoio às profissionais. "A participação das doulas é fundamental para diminuir o número de intervenções no parto, além de ser direito da mulher ter uma profissional que lhe facilite o trabalho de parto". Ele informou que o seu mandato, em conjunto com o Instituto de Defensores de Direitos Humanos, está movendo uma Ação Civil Pública para que a Resolução 266/2012 do Cremerj seja derrubada.

Conselho se defende

Segundo a obstetra responsável pela Câmara Técnica de Ginecologia e Obstetrícia do Cremerj, Vera Fonseca, a resolução tem por objetivo "promover a melhor assistência obstétrica às mulheres no estado do Rio de Janeiro".  A médica afirma que cabe aos dirigentes das instituições de saúde "consultarem e acatarem" as resoluções do Conselho, mas esclareceu que o Cremerj não fez qualquer ameaça aos diretores de maternidades.

O Cremerj também se coloca contrário a partos domiciliares.  Outra resolução, a 265/2012, proíbe a presença de médicos obstetras em partos residenciais. De acordo com Vera Fonseca, o Cremerj entende "que o parto deve ocorrer numa maternidade, para que, caso haja alguma intercorrência, a paciente possa ser devidamente assistida". Questionada sobre as indicações da Organização Mundial da Saúde (OMS), de que a mulher gestante de baixo risco tenha respeitado o desejo de dar à luz no local que mais se sentir segura, e sobre a limitação do livre exercício da profissão de médicos obstetras, a médica disparou: "Só podemos dizer que o parto é de baixo risco após 24 horas do nascimento. Sendo assim, devemos promover que todo nascimento ocorra em uma maternidade, pois é o local mais seguro".

Há controvérsias

A doula Aline Amorim discorda do posicionamento do Cremerj. "Se eles estivessem realmente preocupados com a saúde e o bem estar de mãe e bebê, ao invés de interferir no trabalho de outros profissionais ligados à assistência ao parto, estariam criando resoluções para investigar e punir os médicos que realizam cesarianas por conveniência, contra a vontade da gestante – aumentando assim o risco de morbidade para mãe e bebê".

Ela comentou sobre as evidências apontadas em estudos de benefícios para a mãe e para o bebê assistidos por doulas. "A doula diminui a taxa de cesarianas, aumenta a satisfação da mulher com o parto, diminui as intervenções no parto. Na verdade, a doula só traz benefícios".

Aline considera, ainda, que o posicionamento do Cremerj
afronta os direitos da mulher. "Não só no parto, mas em todos os momentos da sua vida, a mulher deve ter a sua vontade respeitada. Se a mulher considera importante o acompanhamento profissional de uma doula ela não pode ser cerceada. Não faz sentido um conselho de classe tentar impedir o trabalho de um grupo de profissionais sem ouvir o que as mulheres querem".

Falta regulamentação

O obstetra e presidente da Associação de Ginecologia e Obstetrícia do Estado do Rio de Janeiro (SGORJ), Raphael Câmara, diz que a SGORJ concorda com a decisão do Conselho. "No contexto brasileiro nós apoiamos a decisão. Não existe regulamentação da profissão de doula. Ela é listada apenas como ocupação no Ministério do Trabalho e Emprego, mas sem nenhuma exigência de formação. Uma pessoa analfabeta pode se autointitular doula".

Segundo Câmara, a figura da doula "seria interessante", mas no Brasil as profissionais estariam "ideologicamente contra os médicos". "O maior problema é elas ficarem na cabeça da paciente dizendo que o que o médico está fazendo é errado, que é violência. Quem é mais capacitado para dizer se uma cirurgia é necessária ou não? O médico com anos de formação ou uma pessoa que não estudou para isso? Não há como trabalhar com esse clima", reclamou.

Outra questão abordada pelo médico é a atuação dessas profissionais no Sistema Único de Saúde, "onde não se conhece nem a paciente e nem a procedência da doula". "Ela chega se dizendo parte da equipe médica, mas no SUS ninguém pode receber por fora e elas são remuneradas pelas mulheres que elas acompanham. A atuação é totalmente irregular".

Doula não compete com obstetra

Aline Amorim defende que a atuação das doulas não substitui ou
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compete com o papel de nenhum outro profissional que trabalha na atenção ao parto. E explica: "A  doula está preocupada com o psicológico, com o emocional da gestante e com o que ela está recebendo de informação. A doula é importante, o obstetra é importante, a enfermeira obstetriz é importante, o pediatra é importante". 


Ela acredita que o principal ponto que motivou a resolução é justamente o acesso à informação: "Com informações essas gestantes se empoderam e começam a questionar os médicos sobre intervenções desnecessárias que receberam, porque elas começam a estudar. Elas também se informam e descobrem as indicações desnecessárias de cesarianas. Uma mulher informada e conhecedora dos seus direitos vai exigir muito mais e a doula é a fonte dessas informações".

Não só a OMS, mas também o Ministério da Saúde recomendam a atuação das doulas no acompanhamento de partos. Além dos benefícios à mãe e ao bebê, comprovados em estudos no mundo todo, partos naturais também reduzem custos, como aponta a doula voluntária da Maternidade Escola da UFRJ, Denise Duque Estrada. "Toda a medicação envolvida em um parto induzido ou em uma cesariana é muito cara. Anestesias, ocitocina, que é hormônio sintético, medicação para evitar hemorragias. São remédios caríssimos. O parto humanizado reduz absurdamente os custos e isso está comprovado cientificamente", afirmou.

Cesarianas no Brasil

Para Denise, o Conselho retira direitos da mulher, mas também reforça a ideia de que a cesariana é o caminho para a modernidade. "O Cremerj está tirando o alívio da dor, a segurança, a auto-estima naquele momento primal para a mulher. É um momento em que você está como fêmea, no contato mais íntimo com a sua natureza mais remota, diante de um corpo que foi preparado para isso. A mulher produz a ocitocina, produz a endorfina, num ambiente propício. E a doula encoraja e minimiza o medo da dor. Dor, todo ser humano é capaz de suportar e ela é diferente de sofrimento. A doula trabalha com exercícios específicos de respiração, estará ao lado da mulher o tempo todo, diferentemente do obstetra, que entra somente no momento da cesariana".

De acordo com a doula, o que estaria por trás da resolução do Cremerj seria a manutenção de um sistema de saúde que privilegia o dinheiro. "É um retrocesso. O que comanda é que a cesariana paga mais do que um parto natural. Enquanto se faz um parto natural de oito a 12 horas, e pode levar a 15 horas, 30 horas, se fariam dez, 15, 30 cesarianas. Tem uma questão econômica por trás disso. O profissional que vai assistir essa mulher no parto quer tecnologia, quer acelerar os processos. Não existe a lógica do respeito à mulher e ao seu momento, que é em grande parte involuntário. O parto é um produto do seu organismo, na mais suprema e pura natureza dele. Está provado que é um momento de recolhimento, de pouca luz, de poder andar, botar a roupa que quiser. E as maternidades não estão preparadas para isso".

Quem tem acesso ao parto humanizado?

As maternidades públicas em sua imensa maioria não estão preparadas e organizadas para atuarem com o parto humanizado. No Rio de Janeiro, somente a Maria Amélia tem esta tradição. Há, ainda, uma Casa de Parto, em Realengo, que atende o SUS. Denise Duque Estrada é categórica: "É uma questão de classe, infelizmente, sim. As mulheres que têm acesso ao parto humanizado são geralmente as que têm mais acesso à informação, têm maior escolaridade, podem pagar uma equipe particular".

Para tentar mudar essa realidade, o grupo de apoio a gestantes Ishtar começou a atuar na Maré em outubro de 2015. As gestantes da localidade são, em sua maioria, encaminhadas pelos pré-natais das Clínicas da Família da região justamente para a Maternidade Municipal Maria Amélia Buarque de Hollanda. Os encontros são mensais e acontecem sempre aos terceiros sábados, às 15h, no Museu da Maré, localizado na Av. Guilherme Maxwell, 26. O próximo encontro do grupo será realizado no dia 16 de abril.

Segundo uma de suas coordenadoras, a doula Andreza Prevot, o grupo é voltado a mulheres que vão parir pelo SUS e visa proporcionar informações e encorajá-las para o parto natural. "Somos um grupo de apoio ao parto e gestação. Fazemos rodas de conversa com o intuito de compartilhar informações sobre parto, sobretudo sobre a violência obstétrica, às mulheres da periferia. Acreditamos que a informação é uma arma na luta por nosso direitos, na luta pelo parto humanizado no SUS, na luta contra a violência obstétrica".

Corroborando com a noção de que o parto humanizado ainda não é para todas, e para ajudar na briga pelo acesso universal a este direito, está Gabriele Rodrigues, uma das frequentadoras do grupo na Maré. Moradora da comunidade do Chacrinha, em Jacarepaguá, ela tem 25 anos, estuda Biblioteconomia na UFRJ e está grávida de sua primeira filha: "O grupo me ajuda a tirar dúvidas, a saber me proteger contra violência obstétrica, com os primeiros cuidados com a minha bebê. Eu já queria um parto humanizado. A busca por espaços onde eu conseguiria um parto mais respeitoso e humanizado me deixou um pouco abalada, justamente por me dar conta de como seria difícil pra mim experimentar esse tipo de parto, já que os espaços são caros e de difícil acesso". Ela contou que no Ishtar Maré encontrou um lugar popular e encorajador.

Formação médica humanizada é fundamental

A tradição da formação médica brasileira, muito voltada para a técnica e pouco ou nada voltada para a humanização dos procedimentos, pode ser um entrave à humanização dos nascimentos. O pediatra Marcus Renato de Carvalho, professor da Faculdade de Medicina da UFRJ, vê na formação uma importante ferramenta de conscientização. Ele coordena o curso de especialização "Atenção Integral à Saúde Materno-Infantil", na Maternidade Escola da UFRJ. 

O curso visa trabalhar com conceitos baseados em evidências e em estudos recentes sobre gestação, parto e pós-parto. A humanização é um dos conceitos-chave do curso. O Blog foi convidado a conhecer esta experiência.

No curso, o público majoritariamente feminino (e apenas um homem) é formado por profissionais que já atuam no SUS. Clampeamento tardio de cordão, contato imediato da mãe com o bebê, amamentação nos primeiros momentos do nascimento, direitos da mulher estão entre os itens tidos como fundamentais para a saúde materno-infantil. Respeitar os momentos da mãe e da criança, as individualidades e o protagonismo da mulher também são peças-chave na formação dos profissionais que procuram o curso.

O professor Marcus Renato não concorda com a resolução do Cremerj. "O trabalho e atuação da doula afeta (e incomoda) os obstetras conservadores, que não respeitam a mulher e querem 'fazer' o parto. O Cremerj é bastante conservador, está desatualizado em relação às evidências científicas no campo perinatal e exerce um poder muito grande sobre nós médicos. Para mim, que sou pediatra, as doulas não atrapalham. Ao contrário, me ajudam, pois contribuem para a saúde do recém-nascido nas primeiras horas de vida e também em todo o processo do nascimento. Quanto mais suave for esse nascimento, melhor esse bebê se adaptará ao mundo e melhor será o vínculo com a mãe", diz o docente que coordena, ainda, o Portal Aleitamento.com.


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