quarta-feira, 27 de abril de 2016

Estamos vivendo o fim da democracia liberal, afirma Christian Laval

Em debate realizado na UFRJ na última semana, o sociólogo francês Christian Laval afirmou que a crise espalhada por todo o mundo não é só financeira, mas também dos sistemas democráticos nos países considerados "livres". E que isto é reflexo da atual fase do neoliberalismo. “O neoliberalismo ameaça destruir o imaginário democrático”, disse. O atual momento político-social vivido em todo o mundo e também no Brasil é denominado pelo sociólogo como “pós-democracia” ou “desdemocratização”. Para ele, o neoliberalismo busca acabar com o sistema político de representação pelo voto. Vamos entender seu pensamento?

Christian Laval é autor, junto de Pierre Dartot, do livro “A nova razão do mundo: Ensaios sobre a sociedade neoliberal”, lançado no Brasil pela Editora Boitempo

Clique aqui para assistir a palestra em Francês. Para assistir a versão traduzida para o Português, clique aqui.

“A razão neoliberal está acabando com o arcabouço que permitia a coexistência de um regime de sufrágio universal e uma economia liberal capitalista. Não se trata apenas da invasão do mercado e da redução do Estado. É a mudança de uma racionalidade que passa por todas as esferas da vida”, disse.

Essa mudança de organização da vida em sociedade, segundo Laval, refletiria a racionalidade empresarial. “É como se todas as formas de existência precisassem ser moldadas sob o paradigma das empresas”.

Ele reconhece que o sistema representativo permitiu a manutenção das classes mais ricas na condução da política e da economia mundiais, “mas abriu brechas” para a contestação. “O Estado de Bem-Estar Social talvez tivesse sido impossível sem o sistema representativo”. Ele citou, ainda, como exemplo, as pressões exercidas pelos sindicatos para que fossem montados sistemas previdenciários e conquistados diversos outros direitos trabalhistas.

Porém, parece que se esgotou especialmente na Europa e na América Latina este tempo: “O neoliberalismo é um conjunto de medidas e discursos que fecham as possibilidades do bem-estar social. Está ocorrendo o esvaziamento da democracia representativa. O neoliberalismo é antidemocrático”, afirmou.

As principais características do modelo

A ideia básica é que as regras do mercado permeiem as leis e sejam assimiladas por toda a população. Uma das iniciativas, neste sentido, é a “despolitização da política com a implementação de aspectos técnicos de governança”. Já não seriam necessárias lideranças políticas, mas gestores da máquina pública para atuarem na condução do Estado. É preciso ter eficiência, eficácia. É preciso tratar o Estado como empresa.

Laval citou o exemplo da Constituição da União Europeia, que é regida por regras de mercado e que está acima das constituições dos Estados que compõem o bloco econômico. O “fator econômico é maior que qualquer outra necessidade política ou social”. A globalização, segundo o sociólogo, ajuda a impor a vontade dos mercados mundiais sobre as populações.

Christian Laval. Foto de Paola Manfredi, Revista Números Rojos
Outra característica do neoliberalismo bastante marcada por Christian Laval é a modificação das relações entre governantes e governados. “A democracia liberal pressupunha a predominância da esfera pública sobre a privada. Havia uma relação com o bem público”. No entanto, a “racionalidade neoliberal” dilui o direito público e o substitui pelo direito privado. A figura do cidadão seria substituída pela figura do consumidor que “exerce sua cidadania no mercado”. Para a composição deste novo cidadão, é necessária, de acordo com o sociólogo, uma mudança também na educação da juventude. “Conteúdos são modificados. Professores devem ensinar o espírito empreendedor e não mais a moral pública. Há um desmantelamento de valores”.

Outra característica do neoliberalismo (e também do próprio liberalismo) é a sua necessidade de ser “pragmático e neutro”. “É uma forma de se proteger e dialogar com as diversas formas de pensamento”. Assim, a aparente contradição entre neoliberalismo e o crescimento de vertentes conservadoras dá lugar a uma convivência harmônica, desde que a preocupação central seja a da manutenção do modelo de gestão empresarial.

Nova forma de totalitarismo?

Christian Laval reconhece que esta “nova forma de democracia transformada em gestão empresarial” aparenta ser uma espécie de "neototalitarismo". “O conteúdo das políticas é ditado pelas multinacionais. As empresas, então, passam a deter todo o poder do conjunto do campo político-social”. Porém, no neoliberalismo, não existe a dimensão da imposição “de cima para baixo”. “Os cidadãos são levados a escolher. A totalização está acontecendo através de uma norma transversal, que passa por todas as esferas da vida social. Ela força os indivíduos a exercerem uma liberdade de escolha”.

A forma subjetiva como o neoliberalismo atua na sociedade levaria o agora consumidor a ser responsável pelo seu futuro. “Aparentemente, tudo vai depender das escolhas que ele vai fazer para tornar-se capital. As grandes instituições mundiais, como o Banco Mundial e o FMI, organizaram seu discurso em torno da ideia de que a educação é um investimento, mas não um investimento coletivo, e sim um investimento privado. Elas dizem que é preciso reorganizar as escolas em torno da ideia de que cada um exerce sua própria educação e investimento para que se desenvolvam como capital”.

A partir da tendência de “previsão do lucro” ao longo da formação dos estudantes, essas mesmas instituições orientam a mudança da forma de financiamento desses estudos. Muda, junto, a lógica educacional, com a abdicação de disciplinas como Sociologia, Filosofia e Literatura, por exemplo. “Além disso, os estudantes precisam pagar mais para tornarem-se responsáveis por sua formação. É preciso que eles escolham as suas disciplinas e se coloquem como investidores”. Assim, entra em cena outra ferramenta: a do financiamento estudantil. “É importante que eles saibam quanto gastaram para que façam a comparação com o quanto poderão lucrar”.

A moda é a da superação

Laval associou a construção da necessidade de superar limites com os esportes de alto desempenho. No neoliberalismo, há um “novo tipo de comportamento que consiste em responsabilizar cada um para que supere suas próprias expectativas, para que busque mais, para que voe cada vez mais alto, cada vez mais longe. Algo comparado a esporte de alto nível. Não é por acaso que grandes empresas investem altas quantias no esporte. Não é só para obter altas taxas de lucro, mas também para alimentar esse imaginário da superação”.

Com a superação, entra em cena mais um elemento: a ausência de limites. “A norma não é mais um limite. É necessário o desejo, a pulsão”. Justamente parte da crítica dos neoconservadores. Além de serem avessos aos direitos das minorias, esses grupos se apoiam em normas rígidas de conduta. “Eles não se dão conta de que o capitalismo e o neoliberalismo precisam dessa ausência de limites”.

Efeitos

A exaltação do modelo empresarial, a busca incessante de metas, a ausência de limites e a desvalorização da dimensão política gerariam, para Laval, “efeitos culturais, morais e políticos muito perigosos”. Mentira, cinismo, ignorância, brutalidade, fascinação pelo dinheiro estariam entre esses efeitos. “A esquerda durante muito tempo combateu essas posturas, mas a sua transformação no mundo todo, não toda ela, também tomada por esse espírito, acaba por sucumbir à desmoralização. Deixou-se levar pela privatização, pelo enriquecimento fácil”.

A população, então, reage com o sentimento de que todo sistema político é corrupto. Passa, então, a se abster em eleições e não tomar posicionamentos públicos. Cresce, com isso, a extrema-direita fascista e não fascista. “Outra reação mais esperançosa é a tentativa de grupos buscarem novas formas de luta e de democracia, com a ocupação de praças e outras ações. Esses movimentos destacam a defesa dos espaços comuns, do bem comum. Sairíamos da desdemocracia ‘por cima’”.

Esse momento pós-democrático, para Christian Laval, é duradouro: “O neoliberalismo tratou de fazer a juventude acreditar que só existe o capitalismo como eterno presente. No Brasil, atualmente, há uma aceleração desse processo”.




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